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Somos todos uma família?

Um recado errado que as empresas estão passando

Já falamos sobre a importância de as empresas manterem discurso e atitude alinhados para que as pessoas percebam o seu real posicionamento. E o cenário de “segunda família” ou “segunda casa” é um grande e importante exemplo de que discurso e atitude não estão passando a mesma mensagem. Sejamos sinceros, todo mundo já ouviu de algum líder, em alguma organização, a frase: “aqui na empresa somos todos uma família”. Ou, então, de algum colaborador: “a empresa é a minha segunda casa”.

Será mesmo?

Você faria na empresa tudo o que faz em casa? Muito provável que não. Assim como não trataria líderes e colegas de trabalho da mesma forma que trata a família. Explico melhor. Na infância, é muito comum os pais ouvirem sobre os filhos: “estava supertranquilo até você chegar”, enquanto a criança está chorando, agarrada na “barra da saia da mãe”, sem responder a nenhuma outra pessoa. A neurociência explica esse comportamento como sendo uma manifestação de emoções, como medo, raiva ou frustração, em que os pais são vistos como porto-seguro. Claro, tem toda uma questão também que envolve uma parte do cérebro ainda em desenvolvimento. Mas, esse sentimento de insegurança em outros ambientes pode permanecer.

No ano passado, a pesquisa Carreira dos Sonhos, do grupo Cia de Talentos, focou na questão do senso de pertencimento. O resultado? Apenas 31% dos jovens sentem que podem ser quem são e expressar suas opiniões sem receio no ambiente de trabalho. É por isso que reforçar o estigma de que todos da empresa são como uma família se mostra um perigo.

Família você não escolhe. Pelo menos, não nesta vida. Além disso, no grupo familiar cada um tem uma função: mãe, pai, filho, irmão… E em nenhuma delas, independentemente do seu desempenho, você é promovido ou desligado. Por exemplo, em casa, uma mãe pode tomar diversas ações por conta de um mau comportamento do filho, mas jamais irá demiti-lo.

Já na empresa, como líder, você escolhe as pessoas com quem vai trabalhar e, mais, tem total responsabilidade sobre elas, suas performances e os resultados que podem promover para a companhia. Afinal, como líder, você deve estar atento às habilidades de cada um, à busca por desenvolvimento e evolução. Porque, diferentemente de uma família, isso tudo refletirá no cargo e, até mesmo, na remuneração do profissional escolhido. Quanto mais um colaborador evoluir e melhor desempenhar o seu papel, mais responsabilidades e bonificações ele pode vir a ganhar. Do contrário, pode ser movido para outro cargo ou, em muitas ocasiões, desligado.

Porém, e se ele for da família?

Agora, talvez, você esteja lembrando que os negócios familiares ainda dominam a nossa economia. Sim, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mais de 90% dos negócios no nosso país são familiares. Contudo, uma coisa é ser uma empresa familiar, outra é passar a mensagem de que todos são uma família. Temos muitos exemplos de empresas familiares com uma linha de sucessão estruturada e que, inclusive, separa muito bem o lado profissional do familiar. Aqui, por exemplo, temos um relato de pai e filho que trabalham juntos em uma grande empresa. Assim como temos por aí exemplos de grandes corporações não familiares que adotam a expressão “somos todos uma família” e permanecem com executivos sem o menor preparo ou performance em uma cadeira da alta gestão.

Sinto muito em informar que se você usa essa expressão, está passando um recado errado para os seus colaboradores.

Seu time não é sua família, seu líder não é sua mãe, seu liderado não é seu filho. Essa expectativa de fidelidade, lealdade e reciprocidade pode causar uma repressão, um estresse emocional e muita frustração. Na família, não importa quanto tempo você fica sem falar com um tio ou primo, quantos perrengues passaram em um ano, quem cuidou mais ou menos do avô. Você aprende a conviver, respeita e, no Natal, estão todos juntos. Já na organização, você escolhe quem tocará o projeto com você, desenvolve, corrige e, se todos tiverem competência, crescem juntos. Caso contrário, quem esteve na festa de confraternização de fim de ano, pode não voltar depois do Réveillon.

Mas, calma! Tudo isso tem um lado bom. Saber separar o que é profissional e pessoal, assim como os problemas da empresa dos de casa, fará com que você viva com tranquilidade todas as experiências. Há possibilidade de até construir um relacionamento pessoal relevante com os profissionais que trabalham com você ou de compartilhar insights num almoço de domingo em família, caso faça sentido. O senso de pertencimento vem do acolhimento de ideias e/ou sentimentos. E, para acolher, você não precisa escolher ser ou não da família.